Patton, Rebelde ou Herói? (1970)
O que está nessa personagem complexa - o que há de mais moderno em um filme com visual clássico - é a castração de um desejo que em Kurtz foi liberado por completo
Há, desde a abertura, uma confusão de tempos. A bandeira dos Estados Unidos ocupa quase o quadro inteiro. O protagonista, George S. Patton Jr., sai do seu interior. Não vemos a escada ou a porta que ele percorre ou atravessa. Ele simplesmente brota. Ele é parte dessa bandeira, filho legítimo. Há aí alguma abstração. O aspecto soa moderno. Ele bate continência à tropa, fala a nós como se falasse aos seus, o que retira da cena algum resquício de naturalismo. Está sozinho e não está. Planos em detalhe percorrem seu corpo: unhas a fazer, olhos nada trêmulos, estrelas e condecorações presas por todos os lados, anel volumoso, chicote ao canto. É um homem do velho mundo preso a outra moldura. Como evidencia seu discurso, a ele só interessa a morte dos outros e o avanço de seu exército.
É um texto forte, a tônica da obra toda de Franklin J. Schaffner. É um filme de outra época que se alimenta, vez ou outra, da modernidade. O que dela toma, sobretudo, é a lucidez de não se dobrar por completo à patriotada, de não recusar o cinismo político, de não fazer de seu protagonista o que os líderes americanos atolados no Vietnã esperavam. Por outro lado, Patton (George C. Scott) sempre se mostra útil à loucura da guerra: eis um imbecil culto, um homem de ação chegado à poesia e à história, alguém que crê em Deus e na reencarnação - um paradoxo. Ele não tem medo, ou não parece ter. Outras vidas que teria vivido o colocaram o suficiente em variados campos de batalha; ele conhece o cheiro da carne podre de longe. Ele não suporta a covardia e não questiona - nem poderia - seu autoritarismo insuportável. Em momentos parece um ditador e se revela um troglodita, um ignorante que acha que pode derrubar dois aviões inimigos, em meio ao pandemônio, com sua arma esculpida com marfim.
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De 1970, com roteiro de Francis Ford Coppola e Edmund H. North, Patton, Rebelde ou Herói? faz de seu protagonista um rascunho da mentalidade dos líderes de seu país, um adorador da guerra. Seguimos Coppola e North - sem que o apreço pela grandeza de Schaffner e a empolgação da trilha de Jerry Goldsmith atrapalhem tanto - para adentrar um homem que adora tomar territórios. Guerras são desculpas para invadir outros países, sabemos bem. O infame sente-se como Napoleão, talvez um ungido a percorrer estradas secas, cruzar pontes, subir colinas. Não interessa o número alto de baixas na tropa quando sua vaidade está em jogo: ele só quer conquistar, e precisa chegar a algumas cidades antes dos aliados ingleses. Por sinal, em momentos Patton está mais interessado em competir com aliados do que com alemães. O espírito imperialista percorre o homem versado em história. Quando tentam adivinhar seu movimento, os alemães recorrem aos livros; o comportamento e o caminho dos antigos invasores certamente serão seguidos por ele.
Do roteiro de Coppola e North chegamos a frases assustadoras, saídas da boca de Patton com toda sinceridade possível. Pode-se acusá-lo de muitas coisas, menos de falsidade. O que explica sua fascinação: o homem da guerra aqui apresentado é um estúpido justificado pelo culhão, pela experiência de campo, pela espiritualidade como a porta para se entregar, por completo, à morte - ou antes ao seu odor, sua presença, seu som. “Eu amo a guerra, que Deus me ajude. Amo de verdade. Mais do que a minha vida”, diz ele, a certa altura, ao encarar um campo de batalha após o conflito. A atração pelo pior encontra equivalente na ordem imposta pela vida militar: ao assumir uma divisão na África, Patton assusta-se com o desleixo dos soldados americanos ali instalados. Em suas primeiras andanças pelo local, pede correções em fardas, multa um cozinheiro por alargar demais o horário de entrada dos soldados no refeitório, compara a instalação a um bordel e chega a arrancar da parede, com seu chicote, a foto de uma mulher com roupas íntimas - não antes de apreciá-la.
Para o crítico Roger Ebert, a frase citada acima - “Eu amo a guerra…” - antecipa outra, tão forte quanto, de Apocalypse Now, também co-escrito por Coppola: “Adoro o cheiro de Napalm pela manhã”. Vou além: talvez Patton, a personagem, antecipe um pouco do coronel Kurtz de Marlon Brando. Ambos exalam loucura e gostam de poesia. Ambos acreditam na força dos homens em campo, mais do que em tecnologias a serviço do conflito. Ao observar o desperdício de soldados alemães mortos no campo de batalha, o general parece nos dizer que muito poderia ser feito com aqueles seres vistos de longe, convertidos em peças de tabuleiro, caso estivessem sob suas ordens. Não é a morte que o militar lamenta, mas o “desperdício” de massa, de material para dar movimento a uma batalha. Por consequência, aproxima o homem de qualquer produto bélico à disposição. Na selva, em uma guerra perdida, Kurtz descobriu novos homens e, em outra nação, forjou seu império. No caso de Patton, um governo deu-lhe forças suficientes para ter muito e não ter tudo. Dominar, mas ceder. O que está nessa personagem complexa - o que há de mais moderno em um filme com visual clássico - é a castração de um desejo que em Kurtz foi liberado por completo. Patton ainda vive sob a ordem dos outros, ainda é menor que a bandeira da abertura.
A confusão que representa vem da mescla entre fanatismo e controle, de frases que exprimem o culto e o boçal. O belicismo extremo da personagem torna Patton, por consequência, um filme antibélico. Ao mesmo tempo em que o amor declarado à guerra não esconde sua sinceridade, faz revirar estômagos. Uma criação inegavelmente fascista para um filme em que os nazistas - que, diz a lenda, temiam Patton - são mostrados como militares comportados em salas de guerra semelhantes ao laboratório de um vilão da série 007. E quando os alemães caem e saem de cena, o general já tem na mira seus novos inimigos: os soviéticos. Os líderes americanos encastelados em gabinetes - um pouco mais polidos, mais diplomáticos - sabiam que Patton olhava para o lado certo. Só não podiam demonstrar ser tão celerados.
A caminhada final do protagonista marca a despedida de um homem e de um tipo de guerra. A partir dali, conflitos entre nações tomariam nova forma, com bombas atômicas e napalm lançados de aviões e helicópteros, com armas cada vez mais letais e a menor necessidade de material humano em campo. Atacar de algum lugar distante, sem estar próximo ao inimigo, não faz sentido - nem traz prazer - a alguém que ama o cheiro da morte.
(Patton, Franklin J. Schaffner, 1970)
Referencial bibliográfico:
EBERT, Roger. Grandes filmes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
Nota: ★★★☆☆